segunda-feira, 5 de junho de 2017

CÂNTICO ESPIRITUAL



CÂNTICO ESPIRITUAL  


I
Onde é que te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo fugiste,
Havendo‑me ferido;
Saí, por ti clamando, e eras já ido.

II
Pastores que subirdes
Além, pelas malhadas, ao Outeiro,
Se, porventura, virdes
Aquele a quem mais quero,
Dizei‑lhe: que adoeço, peno, e morro. 

III
Buscando meus amores,
irei por estes montes e ribeiras;
Não colherei as flores,
nem temerei as feras,
E passarei os fortes e fronteiras.

PERGUNTA ÀS CRIATURAS

IV
0 bosques e espessuras,
Plantados pela mão de meu Amado!
ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei‑me se por vós ele há passado!

RESPOSTA DAS CRIATURAS

V
Mil graças derramando,
Passou por estes soutos com presteza,
E, enquanto os ia olhando,
Só com sua figura
A todos revestiu de formosura.

ESPOSA

VI
Quem poderá curar‑me?!
Acaba de entregar‑te já deveras;
Não queiras enviar‑me
Mais mensageiro algum,
Pois não sabem dizer‑me o que desejo.

VII
E todos quantos vagam,
De ti me vão mil graças relatando,
E todos mais me chagam;
E deixa‑me morrendo
Um "não sei quê", que ficam balbuciando.

VIII
Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo onde já vives?
Se fazem com que morras
As flechas que recebes
Daquilo que do Amado em ti concebes?

IX
Por que, pois, hás chagado
Este meu coração, o não saraste?
E, já que mo hás roubado,
Por que assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?

X
Extingue os meus anseios,
Porque ninguém os pode desfazer;
E vejam‑te meus olhos,
Pois deles és a luz,
E para ti somente os quero ter.

XI
Mostra tua presença!
Mate‑me a tua vista e formosura;
Olha que esta doença
De amor jamais se cura,
A não ser com a presença e com a figura.

XII
0 cristalina fonte,
Se nesses teus semblantes prateados
Formasses de repente
Os olhos desejados
Que tenho nas entranhas debuxados!

XIII
Aparta‑os, meu Amado,
Que eu alço o vôo.

ESPOSO

Oh! volve‑te, columba,
Que o cervo vulnerado
No alto do outeiro assoma,
Ao sopro de teu vôo, e fresco toma.

ESPOSA

No Amado acho as montanhas,
Os vales solitários, nemorosos,
As ilhas mais estranhas,
Os rios rumorosos,
E o sussurro dos ares amorosos;

XV
A noite sossegada,
Quase aos levantes do raiar da aurora;
A música calada,
A solidão sonora,
A ceia que recreia e que enamora.

XVI
Caçai‑nos as raposas,
Que está já toda em flor a nossa vinha;
Enquanto estas rosas
Faremos uma pinha,
E ninguém apareça na colina!

XVII
Detém‑te, Aquilão morto!
Vem, Austro, que despertas os amores:
Aspira por meu horto,
E corram seus olores,
E o Amado pascerá por entre as flores.

XVIII
0 ninfas da Judéia,
Enquanto pelas flores e rosais
Vai recendendo o âmbar,
Ficai nos arrabaldes
E não ouseis tocar nossos umbrais.

XIX
Esconde‑te, Querido!
Voltando tua face, olha as montanhas;
E não queiras dizê‑lo,
Mas olha as companheiras
Da que vai pelas ilhas mais estranhas.

ESPOSO

XX
A vós, aves ligeiras,
Leões, cervos e gamos saltadores,
Montes, vales, ribeiras,
Águas, ventos, ardores,
E, das noites, os medos veladores:


XXI
Pelas amenas liras
E cantos de sereias, vos conjuro
Que cessem vossas iras,
E não toqueis no muro,
Para a Esposa dormir sono seguro.

XXII
Entrou, enfim, a Esposa
No horto ameno por ela desejado;
E a seu sabor repousa,
0 colo reclinado
Sobre os braços dulcíssimos do Amado.

XXIII
Sob o pé da macieira,
Ali, comigo foste desposada;
Ali te dei a mão,
E foste renovada
Onde a primeira mãe foi violada.

ESPOSA

XXIV
Nosso leito é florido,
De covas de leões entrelaçado,
Em púrpura estendido,
De paz edificado,
De mil escudos de ouro coroado.

XXV
Após tuas pisadas
Vão discorrendo as jovens no caminho,
Ao toque de centelha,
Ao temperado vinho,
Dando emissões de bálsamo divino.

ESPOSA

XXVI
Na interior adega
Do Amado meu, bebi; quando saía,
Por toda aquela várzea
já nada mais sabia,
E o rebanho perdi que antes seguia.

XXVII
Ali me abriu seu peito
E ciência me ensinou mui deleitosa;
E a ele, em dom perfeito,
Me dei, sem deixar coisa,
E então lhe prometi ser sua esposa.

XXVIII
Minha alma se há votado,
Com meu cabedal todo, a seu serviço;
já não guardo mais gado,
Nem mais tenho outro ofício,
Que só amar é já meu exercício.

XXIX
Se agora, em meio à praça,
já não for mais eu vista, nem achada,
Direis que me hei perdido,
E, andando enamorada,
Perdidiça me fiz e fui ganhada.

XXX
De flores e esmeraldas,
Pelas frescas manhãs bem escolhidas
Faremos as grinaldas
Em teu amor floridas,
E num cabelo meu entretecidas.

XXXI
Só naquele cabelo
Que em meu colo a voar consideraste,
‑ Ao vê‑lo no meu colo,
Nele preso ficaste,
E num só de meus olhos te chagaste.

XXXII
Quando tu me fitavas,
Teus olhos sua graça me infundiam;
E assim me sobreamavas,
E nisso mereciam
Meus olhos adorar o que em ti viam.

XXXIII
Não queiras desprezar‑me,
Porque, se cor trigueira em mim achaste,
já podes ver‑me agora,
Pois, desde que me olhaste,
A graça e a formosura em mim deixaste.

XXXIV
Eis que a branca pombinha
Para a arca, com seu ramo, regressou;
E, feliz, a rolinha
0 par tão desejado
já nas ribeiras verdes encontrou.

XXXV
Em solidão vivia,
Em solidão seu ninho há já construído;
E em solidão a guia,
A sós, o seu Querido,
Também na solidão, de amor ferido.

XXXVI
Gozemo‑nos, Amado!
Vamo‑nos ver em tua formosura,
No monte e na colina,
Onde brota a água pura;
Entremos mais adentro na espessura.

XXXVII
E, logo, as mais subidas
Cavernas que há na pedra, buscaremos;
Estão bem escondidas;
E juntos entraremos,
E das romãs o mosto sorveremos.

XXXVIII
Ali me mostrarias
Aquilo que minha alma pretendia,
E logo me darias,
Ali, tu, vida minha,
Aquilo que me deste no outro dia.

XXXIX
E o aspirar da brisa,
Do doce rouxinol a voz amena,
0 souto e seu encanto,
Pela noite serena,
Com chama que consuma sem dar pena.

XL
Ali ninguém olhava;
Aminadab tampouco aparecia;
0 cerco sossegava;
Mesmo a cavalaria,
Só à vista das águias, já descia. 


POEMAS MAIORES DE SÃO JOÃO DA CRUZ. 
Fonte: http://documentosocdsigreja.blogspot.com.br/2009/09/poemas-maiores-de-sao-joao-da-cruz.html - Publicado em 27/09/2009.