Como não se comover com essas palavras
tão piedosas e sinceras que brotam de um coração arrependido? Como não
se apropriar delas para repeti-las, de joelho, a essa Mãe tão terna e
tão misericordiosa, porque é a Mãe da Misericórdia?!?!?!
* * *
EIS-ME AOS VOSSOS PÉS, Ó MINHA MÃE!
Eis,
ó poderosa Mãe de Deus, eis aos vossos pés um traidor, um pérfido, um
ingrato. Ele é o bárbaro que fez jorrar debaixo de vossos olhos o sangue
de vosso Filho inocente. O infiel que teve a coragem de abandonar-vos. O
escravo fugitivo e rebelde. Ei-lo enfim, ei-lo de volta. Ele está
diante de vós. Que ocasião mais favorável podes esperar para vos vingar?
Ele está em vossas mãos, é hora de lhe fazer sentir o rigor merecido de
vossa justa cólera.
Podeis perdê-lo, podeis castigá-lo, podeis até aniquilá-lo se o
quiserdes. Expulsá-lo, repeli-lo, isso é muito pouco. Ao invés, faças
estourar sobre ele o raio de vossa indignação, tire do mundo um monstro
sem semelhante sobre a terra, condene-o, ele o merece, a esta prisão,
eterna morada da morte e do horror.
Porém insensato, o que digo? Em vós (há) rigor! Em vós (há) vingança! É
este então o emprego que Deus vos deu? É este o ministério ao qual
fostes destinada? Contudo seria então falso o que a Igreja universal tem
repetido de século em século, que sois a Advogada e o Refúgio dos
miseráveis? Seria então falso o que os Pais da verdade pregam
altivamente? Seria então falso que sois a Mediadora da paz entre Deus e
os homens, a Esperança dos desesperados, o Asilo dos pecadores, a
onipotente Reconciliadora dos infelizes filhos de um pai culpado?
Ouças, grande Rainha: esse monstro de infidelidade, esse traidor, esse
ingrato que vos ultrajou tão cruelmente, ah!, esse ingrato indignado,
sou eu, e apesar de tudo isso sou vosso filho: vosso filho,
concebeste-me no momento afortunado onde consentistes na encarnação do
Verbo eterno. Vosso filho, engendraste-me nas angústias, ao pé da cruz.
Ah! Minha terna, minha amável Mãe, se, para justificar vossa ira,
recordas-me minhas perfídias, eu, para justificar meus pedidos, vos
recordo o Calvário.
É aí, sobre essa montanha adorável, que foi paga a dívida imensa de
minhas iniquidades. É aí que foi rasgado o registro de minhas
obrigações. É aí que foi apagada a fatal sentença de morte já publicada
contra mim. É aí que foi apertado o nó da paz e da aliança entre o céu e
a terra. É aí, enfim, que foi lacrado pelo sangue do Homem-Deus o
grande testamento de reconciliação e de graça, que me deu direito à
herança de meu irmão primogênito. E vós, sim, vós mesma fostes a
cooperadora dessa grande obra, única digna de um Deus.
Mas se lembranças tão ternas e tão vivas não podem despertar em vós a
compaixão por um infeliz, sejas ao menos tocada pelas últimas palavra de
vosso Filho sobre a cruz. Sim, ele, ó minha mãe, sim, ele próprio, após
trinta anos de cansaços, após ter bebido até o fim o amargo cálice de
minhas iniquidades, apresentadas desde então ao seu pensamento, tomando
meu lugar por um excesso inaudito de caridade, me deu a vós por filho, e
vos deu a mim por mãe.
Esse ato solene de sua vontade, ao qual ele quis que estivesses
presente, a fim de vos declarar publicamente, diante do universo
inteiro, executora de suas disposições, esse ato foi a única lembrança
que ele vos deixou por escrito em seu grande testamento. Este também foi
o emprego que ele teve por bem vos destinar, e que aceitastes de bom
grado. Como, portanto, continuas inflexível a esse traço de caridade sem
precedentes? Como vos recusas a cumprir a honorável função que vos foi
dada?
Ó minha Mãe, tende piedade do mais miserável dos pecadores. Ele custou o
sangue e a morte de vosso Filho, e esse sangue e esta morte serão
completamente perdidos por mim quando eu me perder. E eu perderia
certamente se não me ajudastes. Conceda-me então vossa proteção, vosso
apoio, vosso socorro, e minha salvação está assegurada, e compensarei
por louvores eternos todas as minhas ingratidões passadas.
Peço muito, eu o sei, eu o vejo. Acaso isso custará muito ao vosso
coração? Acaso a imensa misericórdia cuja necessito invadirá, ofenderá
os imprescritíveis direitos da justiça? Pelo contrário. Tomo como penhor
disso o ilustre Crisólogo. Sua palavra me encoraja e me reanima.
As virtudes, diz ele, têm isso em comum, que elas se ligam umas às
outras, de modo que se isolardes uma, uma única, destruireis todas as
demais. Portanto, se a justiça e a misericórdia são duas virtudes
distinta, elas são irmãs, e é de sua natureza serem inseparáveis. É por
isso que no próprio Deus, fonte eterna de todas as verdadeiras virtudes,
a misericórdia não existe sem a justiça, nem a justiça sem a
misericórdia.
Logo, conclui esse grande doutor, uma equidade sem bondade degenera em
rigor, e uma justiça sem misericórdia torna-se crueldade. Quereis,
augusta Virgem, quereis ser rigorosa e cruel comigo? E quando o quereis,
o podereis? Tereis a coragem disso?
DE CONCILIIS, Louis-Marie. Marie, étoile de la mer. Tradução de Robson Carvalho. 2ª ed. Paris, Gaume Frères et J. Duprey, 1873.
Visto em: http://catolicosribeiraopreto.com/eis-me-aos-vossos-pes-o-minha-mae.
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